Beijada pela morte
Apertei o casaco firmemente ao redor do meu corpo. A noite estava fria e eu andava rápido querendo chegar em casa. As ruas pouco movimentadas me passavam pouca ou nenhuma confiança. Mas eu já estava chegando, a pouco mais de 500 metros estava minha casa quentinha e aconchegante, meu cobertor e a Tv. Era tudo que eu conseguia desejar naquele momento.
Enquanto passava por um mendigo tentando fazer uma fogueira com papelão me dei conta do quão pequenos se tornaram meus sonhos com o passar do tempo. Todas as coisas que imaginei querer a dez anos não faziam mais sentindo. Eu queria ser bailarina e ser ovacionada por milhões de pessoas. Hoje sou garçonete numa loja de fast food e desejo apenas plano dentário. Antes desejava ter filhos e uma família o mais rápido possível. Hoje passo minhas noites de sábado jogando poker on-line. Era uma droga.
Caminhei um pouco mais rápido vendo a fumaça da minha respiração fazer círculos no ar a minha frente, bastaria uma curva, pensei. Uma curva, mais alguns metros e eu chegaria em casa, mas assim que a fiz um arrepio agourento desceu por minha coluna, como se pressentindo uma presença maligna. Minha cabeça fez um giro completo vasculhando a rua estreita a minha frente, mas não vi nada. Sentidos malucos, pensei enquanto continuava a caminhar.
E já estava quase no final quando ouvi um barulho de algo caindo no chão. Me virei rápido e parei de andar. Que era uma péssima coisa a se fazer num beco escuro aquela hora da noite. Mas nunca pensamos essas coisas na hora em que deveríamos. Então fiquei lá parada tentando entender de onde vinha aquele som, quando vi um enorme gato laranja correr perto de uma lata de lixo e fugir. Soltei a respiração que nem percebi estar prendendo e ri por ser tão boba.
Me virei para voltar a caminhar e um grito assustado ficou preso na garganta quando o vi parado a dois metros de mim.
Ele tinha uma postura relaxada como se estivesse estado ali o tempo todo. As sombras escondiam seu rosto e isso deixava sua postura ainda mais assustadora.
Dei um passo atrás, pensando se eu deveria correr ou pegar meu spray de pimenta na bolsa. Mas isso levaria tempo demais, na verdade pensar sobre isso já estava levando tempo demais, então minhas pernas se tencionaram prontas para correr e eu me virei, apenas para dar de cara com o homem bem na minha frente novamente.
Era humanamente impossível ele ter se movido tão rápido, então o pânico fez minhas pernas amolecerem um pouco. Eu não teria chance não era? Eu não conseguiria correr, ou fugir de qualquer forma. E a julgar pelos músculos visíveis na camisa de tecido fino, de jeito nenhum eu poderia lutar com ele.
Então subitamente senti uma calma estranha me dominar. Do tipo que você sente quando algo grandioso está para acontecer e você não pode fazer nada além de sentar e apreciar o espetáculo.
― Não vai gritar?
Perguntou ele com a voz mansa e pude notar uma risada no fim.
― Porque eu gritaria? Ninguém vai fazer nada.
Minha resposta pareceu diverti-lo ainda mais, pois ele começou a andar em volta de mim, analisando minha silhueta.
Mas havia algo estranho em seus olhos, não era como uma cara olhando uma mulher, era como se ele estivesse apreciando sua próxima refeição. E talvez fosse, conclui.
― Não vai gritar, nem fugir? ― Falou ele tão próximo de mim que sua respiração brincava com meu cabelo.
― Não.
Respondi calmamente. Tão calmamente que chegou a assustar a mim mesma. Numa situação tão inusitada assim, não era para eu estar calma não é?
― Você é uma criatura singular.
Concluiu ele parando na minha frente novamente, então ele esticou seus dedos pálidos e empurrou meu cabelo para trás expondo meu pescoço e se inclinou para frente, deixando seu rosto a centímetros da pele exposta.
― Singular e deliciosa.
Falou e ele inspirando profundamente em meu pescoço. Então todas aquelas coisas malucas que você pensa que não vão acontecer na sua vida, por serem estranhas demais para tanto vieram a minha cabeça e uma gargalhada explodiu por minha garganta fazendo-o se afastar e me encarar com estranheza.
― Você é um vampiro, sério?
Pus as mãos na barriga tentando controlar o riso. Mas eu não conseguia.
Todas aquelas histórias, séries, livros e afins que estavam pipocando na mídia me vieram a cabeça automaticamente. Ele ainda me encarava sem dizer nada e em algum canto louco da minha cabeça pensei se ele brilharia no sol. E isso me arrancou ainda mais gargalhadas.
― Você é louca?
Perguntou-me ele e então eu parei de rir. Imediatamente. Como se um interruptor fosse desligado.
― Você é a criatura mítica e eu que sou louca?
Perguntei a ele que inclinou a cabeça para o lado me analisando e então ele riu de verdade, como se eu tivesse dito a coisa mais engraçada da vida dele.
Mas diferente de mim era um riso discreto e até certo ponto, bonito. Então ele parou de rir e olhou em volta.
― Você mora por aqui?
Perguntou-me ele e eu pisquei algumas vezes. Eu não escaparia dessa situação, e depois de passar os últimos minutos nesse beco gelado encarando o rosto de uma criatura que eu nem sabia o que era, tudo que ainda queria era minha casa.
― Sim.
Falei num suspiro então ele deu um passo para o lado e me indicou que fosse em frente e começasse a andar.
E eu não hesitei fui direto para minha casa, sentindo sua presença silenciosa, porém sombria atrás de mim.
Assim que pus a chave na fechadura senti seus dedos gelados em meu braço e eu parei.
― Convide-me a entrar.
Instruiu ele me olhando fixamente, então notei que seus olhos eram extremamente pretos, e também notei que suas palavras se insinuaram em minha mente e eu sequer pensei sobre o que ele estava pedindo.
― Entre.
Convidei e um sorriso triunfante e um tanto assustador brilhou em seu rosto.
Então entrei seguida por ele, joguei meu casaco no chão e a bolsa.
― Você não é muito organizada não é mesmo?
Observou ele olhando o casaco no chão e outras roupas espalhadas pela casa. Então eu cruzei os braços na frente do peito. Esse cara estranho e lindo estava querendo beber meu sangue, mas criticar minha casa? Não mesmo!
― Algum problema com isso?
Perguntei um tanto aborrecida, mas isso só o fez rir.
― Absolutamente. Só acho interessante observar os costumes dos humanos.
Concluiu ele e deu de ombros, como se sua fala fosse a coisa mais natural do planeta.
― E quais são os seus costumes? Entrar na casa de garotas a noite para reclamar de suas coisas?
Joguei as palavras sarcasticamente e assim como no beco ele veio para perto de mim tão rápido que eu mal pisquei e já sentia seu corpo extremamente próximo a mim.
― Não. Quando entro na casa de uma garota a noite certamente não é para reclamar de coisa alguma.
Falou ele e analisou meu rosto longamente depois seus olhos desceram por meu corpo e uma chama de desejo brilhou no fundo dos seus olhos pretos. Aquilo despertou algo em mim que estava adormecido a um bom tempo e eu sequer lembrava de sentir. Um calor se espalhou em meu rosto e aos poucos dominou todo o meu corpo.
Ele ergueu a mão e tocou seu polegar em meu lábio inferior, a sua temperatura fria em contraste com minha pele quente enviou mais arrepios por meu corpo, mas dessas vez não era de frio.
Então ele se inclinou para a frente tão lentamente que pareceu demorar uma eternidade e seus lábios encontraram os meus. Seu cheiro era forte e masculino e me acendia os sentidos, então eu corri a mãos por seus cabelos negros e tão macios que me fez querer tocá-lo ainda mais.
E bem antes do que eu desejaria ele se afastou um pouco de mim.
― Qual é o seu nome?
Murmurou ele fazendo seu hálito frio bater em meu rosto.
― Ava. E o seu?
Respondi então ele me enlaçou pela cintura.
― Eu sinto cheiro de sexo em você Ava. Quer mesmo saber meu nome ou quer que eu te faça ter mais prazer do que você já sonhou?
Falou ele bem próximo ao meu ouvido e eu esqueci de tudo mais. De todas as coisas que eu deveria lembrar. Tudo que eu via e sentia eram seus braços ao redor de mim, enquanto ele me levava para o quarto.
Seus movimentos eram leves enquanto puxava minha blusa pela cabeça, seu corpo exibia uma sensualidade quase hipnotizante, e eu o observava com os olhos atentos. Minha respiração estava curta e superficial, eu não fazia idéia do que estava acontecendo ou mesmo se deveria estar acontecendo mas ao toque de sua pele fria no meu corpo nu eu me rendi.
Ele me envolveu com seus braços e me beijou intensamente, fazendo-me respirar seu cheiro bem de perto, sua língua fria brincava na minha boca, explorando e ganhando espaço.
Os detalhes pareciam escapar da minha consciência, pois senti o colchão sobre minhas costas e toda a extensão do seu corpo esguio sobre mim e aquilo me incendiou ainda mais, vários gemidos deliciados escapavam por minha garganta enquanto ele beijava cada centímetro do meu corpo.
Seus olhos pretos estavam fixos em mim e era como se ele me idolatrasse, cada beijo espalhado por minha pele com uma reverencia que me fazia querêlo ainda mais.
Então ele ergueu a mão por sobre minha cabeça e as segurou por lá, enquanto afastava minhas pernas e num movimento me preenchia, o contraste da temperatura do seu corpo em comparação a minha foi tão intenso com essa conexão puramente carnal que eu não resisti e gritei com o prazer explosivo que dominou meu corpo.
Ele sugou meu lábio inferior enquanto se movimentava por cima de mim, num ritmo lento, porém perfeito.
Uma camada de suor cobriu meu corpo enquanto eu agarrava seus ombros com o prazer despertando todos os sentidos do meu corpo, tanto que senti-o estremecer sobre mim várias vezes e entendi que ele estava muito perto de se perder também. Então cruzei as pernas em sua cintura e empurrei meus quadris contra ele, um grunhido se fez ouvir no fundo do seu peito e ele se perdeu em êxtase e prazer.
Respirei fundo correndo os dedos por seus cabelos, então uma expressão ainda mais faminta cruzou seu rosto e ele puxou meu pulso para seus lábios, uma fagulha de medo se insinuou em mim quando o vi expor as presas e as cravar em meu pulso, a dor veio e passou rapidamente, assim que senti-o sugar meu sangue eu fechei os olhos sentindo os espasmos em meu corpo do prazer remanescente após o sexo.
Então ele lambeu meu pulso e afastou o rosto fazendo-me abrir os olhos e respirar profundamente, então ele se deitou ao meu lado e eu me virei apoiando a mão em seu peito.
― Porque você está aqui?
Perguntei a ele depois de alguns minutos observando seu rosto um pouco sombreado pela pouca luz do quarto. Então ele esticou a mão e tocou minha bochecha.
― Você não é motivo suficiente?
Respondeu ele curtamente e senti meu coração falhar momentaneamente.
Era isso então?
A coisa grandiosa que aconteceria na minha vida?
Depois de todas as noites medíocres que passei, imaginando o que eu deveria fazer para me arrancar daquele torpor de melancolia e mesmice no qual eu me agarrava ferozmente nos últimos anos?
Estar com essa criatura intensa e tão capaz de me fazer sentir bem?
Passei minha perna por seu corpo e me sentei em seu colo apoiando as mãos em seu peito.
Sua temperatura ainda me era estranha e causava pequenos arrepios que subiam por meus braços, mas eu seu que me acostumaria em breve.
― Eu sou um bom motivo senhor?
Perguntei sorrindo ao que ele fez o mesmo deixando entrever uma fileira de dentes brancos e perfeitos.
― Como disse, você é uma pessoa singular Ava.
Podia sentir sua voz grave ressoar sobre a palma da minha mão em seu peito.
― E como você me achou, posso perguntar?
Ele segurou minha cintura e eu sentia que seu corpo já estava me desejando novamente e eu me senti poderosa como nunca antes.
― Seu cheiro me perseguiu, e não pude resistir até te encontrar.
Respondeu-me ele e meu coração se aqueceu com essas palavras então ele rolou por cima de mim e minhas próximas palavras foram caladas por sua boca na minha.
Ele não parecia nem um pouco cansado, a volúpia era visível em seus movimentos e no quão rápido ele já estava dentro de mim, seus movimentos eram precisos, como se já me conhecesse a milhares de anos.
E talvez um dia ele me conheceria por milhares de anos.
Segurei seu rosto tomando posse daquela boca sensual e perfeita mordendo seu lábio inferior ao que ele aumentou seu ritmo dentro de mim me levando a orgasmo tão intenso que pensei que não conseguiria sequer respirar depois dele.
Seu corpo teve espasmos em meus braços e ele soltou o peso sobre mim enquanto ele também se deixava levar pelo prazer.
Suas respiração tinha o mesmo ritmo que a minha e eu ri ao notar um detalhe tão fugaz mas que fazia-me sentir ainda mais uma conexão com ele.
Então ele ergueu o tronco e eu olhei seu rosto, ele me deu um sorriso de lado e então o negro tomou conta de se olhos, se espalhando pelo branco como uma macha de óleo na água, e eu observava maravilhada, aquela beleza singular e sombria que me fez prender a respiração.
Então ele enfiou a cabeça em meu pescoço e senti seus dentes perfurarem minha pele frágil, então ele sugou uma vez e eu mal consegui conter o gemido que soou na minha garganta.
Era intenso, talvez intenso demais. A sensação de dividirmos algo tão primordial quanto sangue era gloriosa. E eu me sentia assim com os lábios macios daquele estranho em meu pescoço.
Então envolvi meus braços tentando puxar seu corpo mais para perto, querendo sentir seu coração bater contra o meu.
Mas meus braços não pareciam capazes de fazê-lo, era como se eu não fosse forte o suficiente.
Pensei sentindo meus braços se desprenderem dele e caírem ao lado do meu corpo.
Eu ainda sentia seus lábios em meu pescoço mas todo o resto parecia ficar menos nítido e distante. Tentei piscar para clarear a vista mas ao fazê-lo não consegui os reabrir. Minhas pernas e braços pareciam cada vez mais distantes.
Mas eu ainda sentia seus lábios em meu pescoço.
Então desisti de procurar o resto.
Aquela sensação bastava.
Pensei antes de mergulhar na escuridão.
***
Talvez eu não devesse ter matado a garota.
Pensou o vampiro enquanto procurava sua camisa em meio a todas aquelas roupas espalhadas pelo quarto.
Assim que a vestiu olhou novamente o corpo inerte sobre a cama.
Ela era bonita. Sua pele era clara e seus traços bem definidos, uma sombra de tristeza pairava sobre seu rosto quando a vi. Mas agora já não estava mais lá.
Arriscava dizer que um leve indicio de sorriso brincava em seu rosto.
Dei um passo a frente observando novamente seu corpo nu e sentindo um incomodo no fundo da consciência ao pensar que alguns segundos atrás ela o tinha satisfeito.
Talvez não devesse tê-la matado.
Pensou novamente, mas então deu de ombros e balançou a cabeça saindo daquele cubículo e respirando o ar frio da noite.
Haveria outras.
Sempre existiam outras. Ele se lançou na noite muito rápido pensando em quantas mais abraçariam o beijo da morte sem hesitar se fosse ele a dá-lo.
Conto - Beijada pela Morte |